A madrugada para quem mora na mata é mais solitária ainda do que quando vemos as luzes das janelas da cidade apagando-se uma a uma conforme as horas passam.
Muitas vezes atravessei a noite lendo ou escrevendo e observando a cidade adormecer até que finalmente só restavam uma ou duas luzinhas em prédios distantes. Era uma sensação engraçada olhar para elas e sentir uma certa cumplicidade com aquelas criaturas que repartiam a insônia e a madrugada comigo.
Mas aqui no sertão, no meio da Mata Atlântica não se sente a presença humana. Somente alguma coruja se manifesta na escuridão absoluta da floresta, os sapos ensaiam seu coro ou algum cão late ao longe.
Em uma madrugada assim, sentei-me para trabalhar algumas imagens. Resolvi escanear antigas fotos de família e restaurá-las digitalmente.
Fones no ouvido e comecei o trabalho ouvindo música.
Com apenas uma fraca luz indireta de um abajur a tela do computador recebe toda concentração.
As imagens de quase um século começaram a surgir ampliadas, bem maiores do que em sua cópia no papel amarelado.
Fotos da década de vinte.
Bisavôs mais novos do eu estou agora,me sorriam. Avós mocinhas, enamoradas no início de seus casamentos. Tias de que só me recordo já idosas, primas que nunca conheci. Amigos da casa, todos desaparecidos no passado.
Os traços da família passeando nos narizes, nos sorrisos, nas bocas e olhares até chegarem a meus pais a mim e minhas irmãs.
Uma vez quando tinha uns dezoito anos comecei a folhear um álbum de retratos e tive um sentimento tão forte que pensei que quando fosse idoso não poderia mais olhar fotografias pois não suportaria a emoção.
Não sonhava ainda em me tornar fotógrafo, mas nessa madrugada recente em total solidão e concentração, frente a frente com aqueles rostos todos iluminados por uma luz prisioneira de um tempo irremediavelmente perdido e no entanto vivo, senti uma emoção parecida com a de meus dezoito anos.
Um pic-nic em Bertioga, onde estavam todos felizes e descontraídos, com seus trajes de passeio começou a ressurgir magicamente oitenta e poucos anos depois.
As personalidades irradiando nos olhares, gestos, posturas corporais.
Então quando já não estava só aqui em meu escritório mas também lá em Bertioga, em companhia de minha família, com o corpo, mente e espírito em locais distintos mas unos, uma linda canção que não conhecia começou a soar dentro de minha cabeça.
Nos fones de ouvido, o poeta docemente cantou:
“Longe, lá de longe,
De onde toda beleza do mundo se esconde,
Mande para ontem
Uma voz que se expanda
E suspenda esse instante.
Lá de longe...
Cante para hoje.”
A vida às vezes tem essas delicadezas.
quinta-feira, 31 de janeiro de 2008
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