quarta-feira, 8 de julho de 2009

Diário de viagem


Definitivamente Budapeste é um livro e não um filme.
O que fica após duas cumpridas horas no cinema são algumas boas frases e a idéia de que entender profundamente um idioma estrangeiro é realmente ganhar uma nova cidadania.
A palavra é o povo.


Encontro com escritores que pretendem carregar a poesia pela vida como imagem de virgem no andor em procissão.
Outros a carregam como o frango do Nelson Cavaquinho.
Em uma história mais saborosa que qualquer penosa, a mulher de Nelson contava o episódio em que incumbido de comprar o almoço de sábado, saiu às dez da manhã e retornou na segunda por volta do mesmo horário.
Voltou um trapo,vindo de animadíssimos pés sujos e quem sabe de que quartos suspeitos.
Amarrotado, cheirando azedo, já na abissal ressaca avançou portãozinho adentro com cara de cachorro ladrão, segurando a ave meio apodrecida como um troféu, como um álibi. Foi seguido por um verdadeiro amigo, um fiel escudeiro de orgia que implorou à esposa do poeta: - Não briga com o Nelson, não. Você não sabe o que ele fez para chegar com esse frango em casa, até correr atrás de bonde onde o havia esquecido, ele correu!
Estou mais para Nelson que para sacristão.
A poesia não nasce para revestir seu autor de respeitabilidade e status social.
A poesia é o alimento debaixo do braço, do suvaco suado, enquanto a vida nos vive em suas corredeiras.
A vida é uma ladeira.


A velhice cada vez me assusta mais. Não a minha que chega aos poucos, como quem não quer nada, disfarçando.
Chega como aquele hóspede, mansinho, humilde, se desculpando pelo incômodo, mas que se aboleta na casa e quer dominá-la, apossar-se dela toda, mais cedo ou mais tarde.
Ela me assusta e horroriza por vê-la devastando aos que amo.
Arranca as rodas.
Para alguns poucos, alguns raros, restam as asas.


A pizza de boteco é uma instituição e certos bares tinham que ser tombados como patrimônio da humanidade que habita aquele bairro.
Um bom boteco tem sempre um bicheiro de plantão, um garçom tão antigo como a casa e clientes que podem ter o DNA de seu cotovelo encontrado no balcão.
Saber que a cerveja é inesgotável enche um homem de confiança no planeta.


O provincianismo é como o tempero imutável de certos pratos no almoço de domingo com a família.


Gilberto Mendes e Eliane agora tem uma cadela que come em sua mesa e dorme no seu quarto. Chama-se Mel e tomou conta da casa como fazem os espertos cachorrinhos.
Um filho ou uma filha peluda alegra a vida, faz a ponte entre nossas estressadas existências com o mundo sem pecado e sem perdão da natureza.
No final somos nós que abanamos o rabo para aquele nariz molhado, aquele amor tão sincero.


Durante o progrma de rádio "Quatro Ases e Um Coringa", no intervalo com os microfones desligados, entrevistados e entrevistadores, discorrem sobre os pepézinhos e os pepézões das grandes cantoras.
Os pés da Badi Assad são lembrados, como seres autônomos, despidos, que dançam como tuaregues, com a mesma lascívia selvagem em volta da fogueira no deserto, sob a lua.
Os de Diana Krall, sabem todos os truques da sedução civilizada. Nova-iorquinos, entronizados em saltos sete e meio, fabricam sonhos nos pedais de seu Steinway.
Dançam em salões utópicos e repousam banhando-se em cascatas de champanhe.


Foi reconhecido em uma discussão cultural de altos e baixos que o advento da segmentação literária de conformidade com a orientação sexual dos autores é uma curiosa realidade.
Por alguns foi considerado inaceitável que as Escritoras Lésbicas ganhem um espaço especial em uma feira literária e os Escritores Punheteiros não recebam os mesmos privilégios.
Abaixo a discriminação para o Quarto Sexo.


Os vendedores de Santos: um super plugado e eficiente em uma loja de tênis, uma anta letárgica em uma loja de instrumentos musicais, uma toupeira néscia tentando digitar um autor que desconhece no computador da livraria.
Fatos isolados ou o retrato de uma época?

Minério

Meu amor não é animal,
É mineral.
Desaparece no tempo,
Lento e solitário.
Minério,
Mergulha no rio do sangue:
Imerso,
Imenso e alucinado.
No lado escuro da lua.
Pérola na noite da concha.
Calado atravessa o tempo.
Calendários caem no lixo
E ele segue inalterado.
Como uma pedra rolando,
Meteoro abandonado.
Trem bala sem passageiro
Ou metrô desabitado.
Submarino, secreto.
Adormecido naufrágio
Que emerge como relâmpago.
A consciência: uma praia.
Algum som o trouxe à tona.
Algum gesto, riso, cheiro...
Algum sonho já sonhado.


s/d.

quinta-feira, 2 de julho de 2009

Balada Beat


Agora eu ando pelas ruas de um Gonzaga imaginário.

Volto a não ter nada como nas antigas madrugadas

Apaixonadas, em que caminhava protegido

Por um velho guarda chuva e por coturnos

Um número maior do que meus pés.

Pela alameda que ladeava o canal

Deserto e molhado, em pleno mal secreto.

Procurava alguma coisa dentro de mim, não fora

E caminhar era só um eco da batida do meu jovem coração.

Ia até a praia escura sem lua e sem a luz nojenta

Que o medo e a cretinice fizeram os prefeitinhos instalar.

Medo dos assaltos e das fodas que quebravam a rotina à beira-mar.

Andava até onde as ondas começavam a invadir a amurada,

Minha passarela úmida, e lá parava olhando o longo mar.

Ouvindo seu barulho que apagava o som dos carros

Que cruzavam a avenida àquela hora.

Às vezes ouvia um Bob Dylan, antes de partir

Nas baladas solitárias, Lay Lady Lay, levava

No espírito esse estado de poesia.

Depois dava às costas para o mar com suas ondas que saíam do nada

E vinham brilhantes, roubando qualquer luz que pudessem no caminho,

Para se acabar na areia escura. De cócoras, sob a sombra do enorme

Guarda-chuva de meu pai, mesclava-me na noite molhada,

Escondia-me como um caramujo em sua casca,

Protegido de qualquer olhar,

No esconderijo de sombra que inventei.

Abrigado, espiando a luz dos prédios altos, rodopiava

Sempre de cócoras, sobre a base sólida dos coturnos militares,

Meu pedestal no qual, eu, estátua camuflada,

Espionava o mundo adulto, o mar escuro.

Sempre este antigo prazer que me acompanhou a vida toda

O de poder, estrategicamente, ver sem ser visto: sentinela de mim mesmo.

Depois voltava, lentamente pelo caminho das alamedas iluminadas

Vendo as antigas, enormes e lindas árvores

Refletidas nas águas lodosas do canal.

Andava então por ruas transversais, circundava quarteirões, e voltava

Sempre e cada vez à linha mestra, rota, rua,

Canal e trilho do meu louco e desatinado trem.

Depois parava embaixo do prédio onde no alto uma menina

Fútil e linda, por quem eu era loucamente apaixonado, dormia há horas.

Lá embaixo olhava, olhava muito tempo para cima,

Para o inalcançável amor. Depois partia

Ansiando que outro dia rapidamente chegasse e eu

Pudesse ir vê-la nos locais que freqüentava

E me esnobava. Eu nada sabia do desejo que me arrastava pela

Coleira, que todo apaixonado usa, como um cão.

E continuava a andar por horas sem nada entender do que se passava comigo,

Nem quem eu era,

Porque havia perdido o controle de mim mesmo.

E nunca antes a fronteira adolescência e idade adulta

Foram tão difusas e confusas.


Agora eu ando por um Gonzaga imaginário

Mais uma vez absolutamente solitário,

Rodado como um velho táxi onde amigos incríveis viajaram,

Onde namoradas e malucas malharam, fumaram e gozaram

Como buzinas no rush do planeta.

Levo no porta luvas, todos os mapas que nunca abri

E todos os livros de poesia que li, reli e elegi.

E o meu rádio irradia a melhor música:

Meu pão, meu pau, meu sal.

Na lataria de baixa qualidade, musgos e marcas

De pequenas maldades, alegrias,

Deselegâncias, insights fulminantes, alergias.

Agora se misturam em meus olhos multifocais

Os locais que existem e os que não existem mais.

Ando à toa, sem buscar nada, nenhum prédio

Que esconda a sensação terrível e inesquecível da paixão.

Vou levado por um velho e calejado coração

Que vadia calmamente sem dono,

Novamente como um cão,

Sem eira nem beira,

Nem coleira.




junho 2003.