domingo, 12 de agosto de 2007

Domingão dos Pais


Resolvi escrever algo hoje, mas estou com a cabeça tão cheia que prefiri postar algo que escrevi no já distante ano 2 000.
Fica sendo minha crônica do dia dos pais.


GERMINAL



Sobrou o livro na estante e uma vontade de saber seu destino atual: morreu? Casou-se novamente? Seguiu o caminho espiritual? O que aconteceu com o poeta?
Faz vinte e cinco anos que nos vimos pela última vez. Tivemos contato só durante o mês em que vivi na comunidade. Eram os anos 70, havia comunidades. Essa era sem drogas, sem sexo e rock and roll. Todos na faixa de vinte aos trinta anos, menos ele, o espanhol que viajava sozinho pelos trópicos.
Hoje tenho a idade que ele deveria ter naquela época. Ainda o revejo bem: a barba cerrada e escura estava sempre por fazer. Seus cabelos lhe caíam sobre os olhos, em um topete desgrenhado, que ele afastava com as mãos. Vestia o corpo magro e forte com o despojamento dos que nunca deram importância às roupas.
Nossas tarefas diárias eram divididas pela manhã, logo depois da ginástica suave que praticávamos às seis horas, com o ar puro entrando pelos janelões que se abriam sobre a cidade de Salvador.
Após o café da manhã, seguíamos para a biblioteca, a cozinha, ou o escritório onde as publicações da Casa eram preparadas com grande cuidado gráfico, ou ainda para as tarefas mais braçais, como limpar o terreno baldio ao lado, onde o lixo jogado pelos vizinhos começava a atrair bichos e criar mau cheiro.
O lema era estar inteiro, atento e se dando a qualquer que fosse o trabalho, no qual nos revezávamos E lá estávamos, Germinal e eu, naquela montanha de entulho, tomando cuidado para não nos cortarmos em alguma lata velha ou vidro. De repente, debaixo de um pedaço de madeira, uma aranha das grandes foi desentocada por nós,
-Que lindo, não? Olha que bicho louco!
Germinal, fascinado como um garoto.
Meu pai, desenhista, sempre me disse que as aranhas e a cabeça das cobras foram desenhadas pelo próprio demônio. E aquela não fugia à regra: era peluda, ameaçadora. Criatura noturna, incomodada com a luz.
Inesperadamente, quebrando nossa contemplação, Germinal a esmagou com um pataço. Levantou os ombros e me encarou com os grandes olhos escuros dizendo rápido, enquanto continuava a trabalhar: - Ê, também uma aranha a menos no mundo, não vai fazer tanta falta...
Não falava sobre sua vida. Silencioso dedicava-se às tarefas, enérgico, obstinado e sério, mas com um sorriso que inesperado, contagiava.
No dia em que parti, me pediu um favor: verificar se seu pai ainda estava vivo e morando no mesmo endereço. Se tivesse morrido me pedia que o avisasse, se não, que eu lhe entregasse a carta que me confiava. Há muitos anos (e muitas mágoas) não se falavam.
Em Santos, em uma velha pensão em frente ao mar, o encontrei em seu quartinho. Ficava longe da construção principal, nos fundos de um quintal maltratado.
Quando cheguei à porta o vi sentado em sua cama, vestindo um grosso casaco, com um gato deitado sobre suas pernas, enquanto lia um livro de Fidel com a pouca luz que o espaço oferecia. Penumbra e penúria. Ofereceu-me uma xícara de café, e usou o tempo em que o preparava em uma minúscula pia, para se recompor da surpresa que minha visita lhe causara. Na única cadeira do quarto, me sentei enquanto corria os olhos sobre seus pobres pertences: pilhas de jornais velhos e livros revolucionários em um canto, algumas roupas emboladas que tentavam escapar de um velhíssimo armário semi-aberto, com seu espelho oval rachado na porta, o prato do gato, que provavelmente era o único ser vivo com quem se relacionava afetuosamente. Entre ele e os parentes donos da pensão, um jardim de ervas daninhas. Sobre uma mesinha de cabeceira, as fotos: senhoras severas, embrulhadas em seus xales, crianças muito antigas, junto a um cachorrinho que com o quintal, se esfumaçaram no tempo, e um jovem de olhar apaixonado, em seu uniforme, segurando um rifle com a determinação que só a guerra e a juventude juntas podem produzir. No meio de três companheiros, o olhar era do mesmo homem que me recebia ali, tantos anos depois e tão longe de sua Espanha e do maldito Franco contra quem lutara.
Sentou-se à minha frente, na cama, e me passou a caneca de café forte. Vendo que eu olhava o livro aberto sobre a cama, perguntou: - Conheces Fidel? Já leste sobre a revolução? São homens de bem. Homens de bem!
- Quer dizer que és um amigo de meu filho? Sabes, já não tenho notícia dele há mais de dez anos. Nem sabia se ainda estava vivo. Está bem? Abandonou a todos. Deixou até sua mulher e seu filho. Jamais telefonou ou escreveu. Desapareceu no mundo. Nunca soube por quê.
Sob sua voz firme, uma tristeza revoltada, imensa, contida.
Ao lhe dar a carta, ficou absorto, fitando o envelope demoradamente, como a um objeto muito estranho que lhe tivesse caído nas mãos. Colocou-a sem a abrir sobre o travesseiro.
Pouco depois, quando me despedi, ele foi à sua pilha de livros, e voltou com um pequeno volume.
- Tome, é para você, amigo de meu filho. Germinal o imprimiu antes de partir. Sempre foi meio poeta, meio louco...
Pela primeira vez sua voz soava sem mágoa. Acredito ter percebido nele, até um orgulho velado.
Vinte e cinco anos depois estou aqui, ouvindo este outro mar quebrar forte na noite lá fora, pensando que caminhos terá trilhado o poeta. Olho o pequeno livro em minha frente, com uma capa mal desenhada e o título singelo “Germinal de Amor “. Penso: Voltou a ver seu velho pai? Sua família? Seguiu em sua solidão atrás de Deus, da paz?
Tão distantes em sua geografia e vida: ele, na ensolarada e negra cidade de Salvador, vivendo monásticamente. E seu pai, em sua guerra eterna, naquele quartinho de fim de mundo, com seus mortos, seu gato, sua Espanha. Mas unidos por este misterioso fio que é a paternidade.

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