quinta-feira, 2 de agosto de 2007

Lanterna Mágica


Domingo à noite revejo Roma de Fellini, depois de vinte anos, talvez mais. É um longo tempo duas décadas. Misturam-se lembranças e imaginação.
Roma era um cinema novo. Não me lembro de nada parecido antes de 1970, quando foi filmada. Fica entre o documentário e a ficção. A vida recuperada e traduzida pela memória afetiva.
Cena antológica: nas escavações do metrô, a descoberta dos afrescos em uma antiga residência romana. É o momento em que o impossível, o proibido acontece: Dois tempos distintos se encontram no mesmo espaço. No frenesi da obra contemporânea, enquanto as máquinas rugem 24h sem descanso, abrindo os intestinos da metrópole que precisa desafogar seu trânsito, a residência de mais de dois mil anos é descoberta, adormecida, protegida em seu túmulo. No silêncio dos afrescos, as expressões, os olhares, o cotidiano, as cores magníficas da antiga Roma.
Nas vestes, nos gestos ancestrais, a cidade e o povo do grande império vivem e por segundos, convivem, se mixam com o olhar do engenheiro que perfura e transforma a capital moderna.
Mas dois tempos não podem conviver no mesmo espaço a não ser no coração dos poetas e o ar que invadiu a câmara recém descoberta por dois mil anos resguardada, passa a destruir rapidamente o inestimável tesouro.
Os afrescos começam a desfazer-se, a desaparecer frente aos olhares atônitos e desesperados de todos, dos operários, do engenheiro, da equipe de filmagem e da própria platéia do cinema que mal consegue respirar.
A cena do teatro de variedades onde a diversão e arte populares tentam fazer a vida continuar em meio aos bombardeios da segunda grande guerra também é inesquecível.
Fellini! Tão raro em nossa TV, em nossos telecines com suas grades ocupadas por tanta mediocridade.
Pela manhã logo no primeiro jornal recebo a notícia da morte de Bergman.
Fellini e Bergman sempre foram o norte da filmografia da minha vida. Para mim eram as duas metades da moeda. O dia e a noite.
Fellini o sol mediterrâneo que tudo aquece e alegra.
A noite imensa, estrelada, profunda: Bergman.
Durante muitos anos tive essa sensação de os dois tão aparentemente antagônicos serem muito, muito próximos. Sempre os senti como duas visões complementares da vida.
Quando li a biografia de Fellini, vi sem surpresa que a admiração mútua era total. Uma adorava a obra do outro. Na primeira vez que se encontraram, saíram caminhando lado a lado, em uma apaixonada conversa que durou oito horas ininterruptas.
Vivi uma época em minha juventude em que quase toda semana havia um grande filme nos aguardando:
Visconti, Pasolini, Truffaut, Kurosawa, Kubrick, Herzog, Alain Resnais, Altman, Buñuel, Vittorio De Sica, Ettore Scola, Louis Malle e tantos outros gênios da imagem. A primeira linha.
Entre todos, porém Fellini e Bergman eram para mim os tops. O supra-sumo.
Sabia que iria sair do cinema diferente do que entrara, mais rico, mais vivido. Sabia que estaria prestes a penetrar em regiões profundas da psique, ter uma nova leitura do amor, da morte, dos medos, da alegria.
Na mesma semana assisti Gritos e Sussurros e Amarcord.
Os dois estão entre os dez filmes de minha vida com toda certeza.
Hoje, na época da Velocidade Máxima e idéias mínimas parece espantoso que tivéssemos tal qualidade à nossa disposição.
Poucas vezes a morte de um artista me causou tal comoção como a de Bergman. Senti o quanto sua obra fazia parte da minha história.
Fui à minha estante e comecei a reler Lanterna Mágica, sua autobiografia, que havia comprado e lido em 1989.
Assim como Roma, a Lanterna Mágica não era vista por mim há quase vinte anos.
No dia de sua morte, recomecei a viver sua vida, suas primeiras recordações. Cada episódio vivido por ele contém a possibilidade de uma cena cinematográfica e tem a marca da visão do mestre.
Terça-feira pela manhã a notícia da morte de Antonioni. A Itália e o cinema de luto.
Na hora do almoço escuto um cd de Caetano, poeta apaixonado pelo cinema, onde canta Nino Rota, o músico inseparável de Fellini. Depois uma homenagem à sua companheira da vida inteira, Giulietta Masina, a grande atriz.
Por fim, canta em italiano a lindíssima composição que fez para Antonioni. A melodia é um espanto. A poesia, um arraso.
Comento com Jane, que Caetano chegando a São Paulo, deveria ter muito em comum com Fellini chegando a Roma. Ambos poetas, com seus vinte e poucos anos trazendo em suas retinas espantadas a vida de suas províncias, Rimini, Santo Amaro da Purificação e o deslumbramento e susto frente à cidade imensa e moderna.
O poeta segue cantando: O melhor o tempo esconde, longe, muito longe, mas bem dentro aqui.
E penso que esse cinema essa poesia é exatamente isso.
Arte se transmutando em outras artes. Música virando poesia. Poesia virando desenho.Desenho virando pintura.
Literatura virando cinema virando poesia virando música...
Cinema transcendental, trilhos urbanos, Gal, Galícia, Buñuel, Lorca, Lígia...
Longe, muito longe, mas dentro aqui.

2 comentários:

Anônimo disse...

quase chorei. como você escreve....

Tatiana disse...

adoro suas fotos e vc realmente escreve bem